quinta-feira, 26 de abril de 2012

Há alguns anos, morou em minha cidade uma família tradicional que foi amada e respeitada por todos. O patriarca da família, então Sr. Joaquim Quinta, foi um dos melhores prefeitos que Corumbaíba já teve!
Chegou em minhas mãos algo muito lindo que sua filha Norma Quinta escreveu e tomo a liberdade de publicar em meu blog...


Tento forçar e me remeter ao passado...o mais longínquo que consigo. Lembranças aos borbotões povoam minha mente. Normalmente eu as afasto numa espécie de defesa, para prosseguir. Mas hoje não. 
Hoje minha amiga Zilma Júlia despertou meus fantasmas e quero recordar, quero me reencontrar nessas lembranças amareladas e subjugadas pela realidade.
Quero me ver pequena, pés no chão, cabelos escorridos e queimados pelo sol, de calcinhas , andando pelas ruas de minha terra natal, de minha Corumbaiba. Todas as casas eram abertas, todas as pessoas amigas, e todos sabiam que aquela “ menina danada de esperta”, era a mais velha do seu Joaquim e da dona Iraceles.
A coroação de N. Sra. Na Igreja Matriz Bom Jesus da Cana Verde. Meu Deus! Como me senti orgulhosa e feliz, encaixada no vão do altar esquerdo, vestida de Mãe de Deus... 



E fui coroada!! De menina sapeca a mais do que anjo, foi realmente uma conquista, e por pouco passava a excomungar aquela meninada terrível que não respeitava minha honorável maternidade, rum! 
E o bingo de um ovo de chocolate que fizeram na casa de festa em frente à praça da Igreja? Meu Deusdoceu, o que uma menininha fazia em um baile? Era baile, pois as pessoas dançavam, mas o que eu me lembro mesmo era do ovão de chocolate. Maior do que eu, pode? Não me recordo de quem o ganhou, mas tenho certeza de que nunca mais desejei algo com tanta força.
Sua amiguinha Moema morreu. COMO? Indigestão, com tantos cajamangas verdes que vocês comeram ontem, bem que avisei troço! Minha amiga deitadinha em um caixão branco,na sala da casa da avó, envolta numa veste branca, ela igualmente branquinha, com cabelos pretos emoldurando o rostinho pálido. Pelo sim, pelo não, nunca mais comi cajamangas. Nem verdes, nem maduros. 

Manhê, dá dinheiro pra comprar pirulitos do Zezão? O gigante Zezão, com sua voz de trovão, só podia mesmo vender doces, de tão doce que era. E o sabor da bala, ah, o sabor. Nem a Nestlé jamais descobriu.

Oba! Hoje tem um show de um povo que sapateia em cima de cacos 

de vidro no cinema do Sueco...deixa eu ir, mãe, deixa! ( e aí aprendi que poderia ser artista também...quebrei muitas garrafas para serem tablado de meu sapateado; foi um sucesso, até minha mãe descobrir).

O primeiro filme, que coisa mais linda do mundo...”Os milagres de Nossa Senhora de Fátima”, me fez chorar demais no escuro do salão paroquial. Queria tanto ver a santinha também, que nem aqueles pastorzinhos, mas nunca vi.

O Nem, foi o primeiro colecionador que conheci na vida...pilhas e pilhas de revistas, que depois de muita insistência, vinham para minhas ávidas mãos. De uma, nunca me esqueci: uma linda mulher loira, tomando banho em uma tina, no meio de um deserto. Ainda eu seria linda daquele tanto. A mulher? Ah, uma tal de Brigite Bardot.

As pitombas da dona Georgina, as jabuticabas da dona Chiquinha? Cada uma fazia “ploct” ao serem arrebentadas na boca , muito diferentes das pitombas e jabuticabas murchas e sem graças das bancas de mercado..

O “Bobinho de saia”, que medo, o “Tipanga” sempre lendo as cartas de uma namorada em qualquer pedaço de papel que lhe dava, a arara do muro do seu Joaquim Machado, o tal bode preto preso num porão da maçonaria, os defuntos enterrados debaixo do pátio do grupo, e os “psiu, mininaaa”, que os presos na cadeia diziam quando eu passava (do outro lado da rua), povoaram muitas noites em que olhos arregalados viam fantasmas atrás da porta.

“Lá vai o seu Urias, o homem mais bravo que Corumbaiba já viu”...
“Dona Vanda com seu Luís Antônio”, “Madrinha Lenita com seu João”, “ Abadia e o Alberone”, viveram as primeiras histórias de amor que me fizeram sonhar...ah, quando eu crescesse só mais um pouquinho, ia 

namorar demais.
“dona Estelita era tão chique que tocava piano...Dona Esperança tinha uma filha chamada Olívia, dona Marieta alugava quartos para poucos hóspedes, o Estevão quase sempre deixava eu falar alguma coisa quando aos domingos ligava um aparelho para passar música na praça... e aos 5 anos de idade, me apaixonei pelo Luís da dona Virgínia... e vem dalí a mania que tenho de querer ser sempre muito bem tratada pelos homens pelos os quais me apaixonei. O meu primeiro amor foi um príncipe.
Célia, Zilmar, Luzia, Joaquim, Lizônia, Nairtinha,Carlinhos, Marilza, Crene, Eleuza, Aguinaldo, Vazinho, Auxiliadora, Zilah, Éber, Ilzete, Odimar...cada um protagonista de um pedaço de minha história.
O pé de flamboyant da porta de seu Tacinho está sempre florido em minhas lembranças; assim como o seu Leno está com sua cadela “Dominique”, os meninos do seu Pindoca tocando viola, a Marta na janela da casa, a Lourdes desenhando as mais lindas bandeiras do Brasil do mundo, e a Maria Divina é a moça mais linda que já vi.
Na praça debaixo, em um banco ladeado de pés de lacerdinha, ganhei meu primeiro beijo...
E dentre todos os outros, jamais recapturei o misto de medo, susto, curiosidade e trem esquisito que senti.
E o Itambé? A água gelada, o vapor úmido, o medo de cobra, a vontade de escalar que nunca me saiu da memória.



Um dia, vim embora, não sei porque e sem olhar para trás... Menina moça, cheiinha de sonhos, dona do mundo inteiro, bonita, inteligente, morando na capital...adeus, Corumbaiba, quero mais é ser feliz. Fuiiiii...
E fui muitas vezes feliz. Infeliz outras tantas, como todo mundo. Casei, descasei, tornei a casar.
Tive muitos filhos, tenho alguns netos, poucos e bons amigos. Fui professora, comerciante, doméstica, amante, esposa, mãe, secretária, política, avó, escritora e advogada. Ainda sou um pouco de cada coisa, não mais necessariamente nessa ordem, confesso. 
A vida me envergou muitas vezes. Tão duramente que quebrei alguns galhos. Perdi a capacidade de florir, já não reproduzo mais . E nesse outono que atravesso, sinto ser capaz de rebrotar, só se adubar minhas raízes. E minha raiz é minha história, é meu começo, é Corumbaiba.
Dizem que os elefantes quando chegam ao final da vida, retornam ao lugar onde nasceram para morrerem. Eu não sou elefante (acho), nem estou no final da vida (espero) e nem quero morrer (ainda). Mas estou sentindo um desejo visceral de retomar minha trajetória, como se nunca tivesse vivido longe dalí.
Sou capaz de descrever minuciosamente dezenas de histórias que vivi em minha primeira infância. Pessoas inesquecíveis, sabores incomparáveis, lugares, casas, cores...minha gente, minha casa, meu lugar, minha vida,minha raiz. 
Quero a segurança de meu ninho, quero o olhar de meus amigos, quero a coragem de minha gente. Quero reescrever minha história. Quero voltar.
Quero passar horas andando nas ruas, resgatando lembranças, respondendo perguntas e conhecendo os filhos dos filhos de meus amigos.

Quero sentar na porta à tardinha, quero aprender a bordar com a Abadia, a plantar com a Nairdes, jogar baralho com tio Ciro, escrever poesias, reaprender a sorrir.
Quero achar ao menos uma das casas de minha infância, ao menos um pé de jabuticaba, ao menos um gole de água do Itambé, ao menos um amigo para me abraçar.
Eu quero voltar. Para recomeçar a sonhar, para continuar a viver.






Mãe

Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.

Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições...
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.

Cora Coralina